A Interrupção do Luto

Vera
2 min readAug 11, 2020

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É importante ver diante de si o rosto que já esteve próximo ao seu num beijo ou abraço.

“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei” — L’Étranger (Albert Camus).

A morte é cheia de ritos. Finda um ciclo, causa dores, une e afasta pessoas. Inúmeras obras de arte na pintura, na literatura e no cinema partem deste pressuposto, ou chegam até ele. É tão natural quando nascer.

O pontual August: Osage County, o juvenil My Girl, e o genial e estrondoso Memórias Póstumas de Brás Cubas têm em comum a morte, o modo como ela altera a vida ou a percepção de vida de quem é tocado pela perda.

A quarentena, além de arrasar vidas e histórias, tirou dois componentes de extrema importância para quem está lidando com a presença da iniludível: a proximidade com família e amigos, e a prova inequívoca da morte, que se dá, entre outras formas, com a contemplação do ente querido no caixão.

As invenções, os ritos como imaginamos, não têm origem espontânea. Eles surgem num movimento que decorre muitas vezes da chancela de Instituições. Sendo a maior expressão religiosa no Brasil, o catolicismo influencia diretamente até quem entrou numa Igreja pela última vez há vinte anos.

Velórios e funerais como conhecemos têm uma série de códigos tácitos. Queremos e precisamos estar próximos de quem perdeu o pai, a mãe. Não estar presente nestes momentos é notado, e muitas vezes, cobrado. Levado ao extremo, pode ser o fim de uma grande amizade.

É importante ver diante de si o rosto que já esteve próximo ao seu num beijo ou abraço. Um ciclo precisa ser quebrado para dar início a outro de lembranças. Quando se tira a peça fundamental desta engrenagem, se compromete todo o sistema do Luto.

O começo e fim da vida são celebrados e chorados. No país africano Gana, celebrações envolvem a morte também. Lá, a expectativa de vida raramente ultrapassa os 60 anos. Se alguém chega aos 63, o enterro vira uma festa. Inimaginável para nós, brasileiros, que aprendemos a chorar e ficar em silêncio na presença da família e dos amigos mais próximos até o caixão ser fechado e levado ao cemitério.

Hoje contamos com mais de 100 mil mortes desde o início da pandemia de 2020. De 1918 a 1920, foram 35 mil óbitos durante a Gripe Espanhola. Os números atuais são assustadores. Quando pessoalizados, não apenas assustam, doem também. A estatística objetiva, a história pessoal fulaniza e revolta.

Ambas merecem nossa atenção, e torná-las natural neste momento de pânico e incertezas parece iniciar um novo rito. Um rito para o qual nenhum de nós estava preparado.

Candido Portinari . Criança Morta, 1944

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