A mão e a luva

Vera
4 min readAug 1, 2020

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A representatividade como forma de empoderamento negro

Foi num sábado, em um restaurante no bairro Higienópolis, na companhia do meu amigo Artur, que me dei conta do quão minoria eu sou. Entre cem pessoas, eu era a única negra. A única negra cliente, no caso. Havia outros negros no recinto, mas todos estavam servindo mesas.

O conceito de minoria aplica-se a grupos que historicamente são marginalizados e privados de conquistas básicas enquanto indivíduos inseridos na sociedade. E naquele momento, eu fui minoria duas vezes.

O preto é minoria num país que o faz maioria nos presídios, nos empregos de força física, e minoria em cargos de chefia, na liderança de grandes empresas e na editoria-chefe dos grandes jornais.

Entre 2012 e 2018, de acordo com o IBGE, o número de autodeclarados negros aumentou em 12 milhões. E não é coincidência que seja de 2010 para cá a grande virada no número de negros nas propagandas da TV e de rede social, na embalagem de produtos, nas colunas da Folha e do UOL, nas vitrines de livrarias.

A Publicidade não é heroína, não inicia um movimento, ela acompanha o sentimento da sociedade e seus anseios, e os anseios de 2018 não são os mesmos de 50 anos atrás. O exemplo mais cristalino desta mudança é a Disney fazendo filme de princesa em que a história principal é a relação da protagonista com sua irmã, mãe ou avó e não mais com o príncipe encantado. O estúdio de animação mais famoso do mundo não está ditando um comportamento, está adotando-o.

A declaração mais ilustre de Woopi Goldberg é acerca da importância que Uhura (Star Trek), interpretada pela atriz Nichelle Nichols, teve na sua vida. A personagem de Nichelle, uma Tenente, é a Oficial de Comunicações da nave USS Interprise. Nichols também protagonizou o primeiro beijo inter-racial da TV americana quando beijou o Tenente Kirk.

Para você parece exagerado que a vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em Ghost (1990) decidiu atuar ao ver que uma negra podia interpretar outros papeis que não escrava ou empregada doméstica?

Eu consigo, apenas de memória, sem recorrer ao Google, citar alguns filmes em que as pessoas negras aparecem pouco, têm papéis sem importância, ou se resumem a estes dois estigmas. É assim em What ever happened to Baby Jane?, The miracle worker, Jezebel, Gone with the wind, Pinky, It’s a wonderful life e mais uma infinitude de clássicos hollywoodianos.

Em The Birth of a Nation, gravado em 1915 e primeiro filme a ser exibido na Casa Branca, o negro e uso do blackface são autoexplicativos. E me limito a recomendar que ele sempre seja acompanhado da introdução irretocável que o Spike Lee fez para BlacKkKlansman.

Aqui no Brasil, em 2004, após quase 150 novelas, tivemos a primeira protagonista negra: Taís Araújo. Ela e Gianecchini formavam o par que também foi o primeiro casal inter-racial a ditar o enredo de uma trama brasileira. O folhetim Da cor do Pecado, transmitido originalmente às 19h, contou com a autoria de João Emanuel Carneiro, que nos brindaria com a excelente Avenida Brasil em 2012.

Quarenta e cinco anos antes, em 12 de junho de 1967, no famoso caso Loving Vs. Virgínia, Richard Loving e Mildred Loving, em decisão histórica, puderam viver em paz como casal após briga judicial histórica. A lei do estado americano proibia a união civil entre brancos e negros. O filme Loving, de 2016, narra a vida da mulher negra e do homem branco que tiveram sua casa invadida no meio da noite pela polícia. Anos depois, Mildred declarou que não pretendia fazer história, queria apenas usufruir dos direitos de estar casada com seu marido. Segundo o site Conjur, os ministros da Suprema Corte, tanto os liberais quanto conservadores, perceberam que a sociedade estava evoluindo e não queriam constar nos autos como retrógrados.

Machado de Assis, o maior dos escritores brasileiros, é branco segundo sua Certidão de Óbito. Acadêmicos discutem qual seria a explicação para o equívoco. Para alguns, não há erro, o registro é intencional. Ainda não existe uma resposta definitiva para esta questão.

Porém, é simbólico que sejam muito recentes o resgate de Machado de Assis enquanto negro, e o discurso positivo da cor preta. Tudo isso é representatividade, é tornar menos inóspito o mundo no qual o negro se vê e é visto.

E enquanto eu escrevo este texto e você o lê, o Bruxo do Cosme Velho é celebrado como deve ser em outros países. Um autor defunto. E negro.

Certidão de Óbito de Machado de Assis

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