Poulaine

Vera
2 min readSep 3, 2020

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Como um artigo de cultura medieval me fez lembrar da minha infância

Recentemente li um artigo que falava a respeito daquele sapato de bico fino e longo que aparece em contos de fada. O poulaine, ou crakow, era um sapato que definia claramente o status de quem o usava na Medievalidade.

Quanto mais fino era o bico, mais denotava que a pessoa calçando-o era membro da aristocracia, pois não precisaria andar longas distâncias nem realizar qualquer atividade que pudesse sujá-lo.

A primeira vez que me lembro de calçar um sapato foi por volta dos 7 anos de idade. Até então meus pés só conheciam chinelo, aquelas havaianas vagabundas que minha mãe chamava de japonesas (acho que eram uma imitação barata).

Consertar o cabresto da japonesa era uma constante na minha infância. Sempre que o chinelo quebrava, eu pegava um ferrinho, o esquentava no fogão, e depois o passava horizontalmente no cabresto para poder andar de novo com os pés protegidos por algumas semanas.

E foi numa situação assim que recebi o convite para o aniversário da criança paulista da rua. Até hoje não entendi, aliás, por que aquelas pessoas, aparentemente ricas, estavam morando na mesma rua que eu.

Animada inicialmente, fiquei triste depois porque eu não tinha sapatos nem roupa para estar numa festinha em que todo mundo tinha pai e mãe. Eu e meus outros quatro irmãos tínhamos apenas mãe. E éramos pobres.

A mãe do aniversariante, Socorro, se compadeceu da minha condição e me deu roupa e calçados. Um conjuntinho roxo, e um par de tênis. Não lembro a cor agora. Podia ser preto ou branco. Eu acho que era branco.

Lembro de chegar muito envergonhada na festinha. Eu estava fofa, banhada e bem vestida, e fiquei olhando da porta todo mundo se divertindo. Depois de um tempo, criei coragem e entrei no salão.

Não me lembro como foi a festa, o que fiz, com quem falei. Só me lembro do conjuntinho roxo e do tênis. E da Socorro.

Hoje, morando em São Paulo há dois anos, me lembro constantemente desta pessoa paulista que me fez uma caridade, que me deu uma alegria, e fez mais feliz o dia de uma criança que jamais teria condição de ter um par de tênis novinhos.

Ser pobre e preta faz parte da minha condição como ser social desde meu nascimento, e momentos como este me marcam de um jeito que definiram como eu seria dali para frente. Mais até do que eu gostaria.

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